Sozinho estás no estrelado manto negro. O pianista atravessa-te os auscultadores com a sofreguidão de ser ouvido adivinhando que te deslumbrarás com algo mais que a composição. 
É de noite e sozinho estás. Mascas a pastilha de horas atrás e o mundo é teu porque às escuras colas etiquetas de quem reivindica e ninguém te pára porque não sabem, não ouvem, não vêem. 
É de noite e devia estar lua cheia. Não está e conformas-te. A voz dos acompanhantes pede-te perdão quando se silencia. Estão também sozinhos e são donos dos espaços de som. 
É de noite. Estavas sozinho e ainda estás. Queres chorar mas há pessoas na tua frente. E engoles o que podes do choro justificado para o deitares mais tarde quando bateres com as canelas no bico da cama. 
É de noite e entrou-te mundo a mais nos pulmões. Sufocas. O teu corpo encolhe com a rotação da terra e resistes porque é só isso que sabes fazer, resistir. É o que fazes melhor desde que aqui andas. Há a música do filme que era do pai, e que viste com o pai, e leste, que era estrangeiro e tu não sabes as coisas todas que querias. Há memórias em ti projectadas na tela preta natural. Queres esticar a mão para pintar mas estás preso por não saberes pintar de todo. A vibração toma-te as coxas. Enches-te do momento por receio de um tardio de semelhante beleza. És pobre de momentos pelo facto de sonhares. 
É de noite e disseste a um ouvido alheio que te esforçaste em tempos para te mudares. E queres que seja mentira por falhares mas não é. Acreditas que é porque é de noite, e estás sozinho. E por muito que te encham as estrelas de luz tu não querias estar sozinho. E sentes falta do arquear de sobrancelhas e do maxilar cerrado a triturar a grande quantidade de comida por se saber que se quer falar, e, por isso, come-se mais rápido. E sentes falta do odor que não é mais que muitos juntos. Um dia distinguirás o cheiro da saudade. E tu, caro ser, conseguirás. Neste despejar não há géneros por razões óbvias ao autor. E não há particulares a não ser a pessoa de quem se sente falta, porque ela é grande para omitir e custa a não falar. É a parte maior da cabeça e a menor são as coisas que ela faz sentir. 
É de noite e deste-te. Sentes as virilhas a salientarem-se com o abrir e fechar de pernas nervoso, mas já não são tuas. Deste-as num dia que não era Natal mas era como se fosse. Houve prendas e luzes e houve a presença de sons e barulhos e tudo do Natal num sorriso para o lado direito. E há dentes a bater com barulhos de partir noz e há a voz que te rasga os tímpanos por ser verdade. 
É de noite e não estás sozinho. Dentro de ti tens a companhia de alguém que não pediu para chegar. Nem pedirá para ir.

Sem comentários:

Enviar um comentário