acabei de me aperceber que não publico aqui há séculos pelo facto do último post conter um excerto do meu último projecto de literatura e ter vindo hoje publicar um excerto daquele que fiz este período. o livro intitula-se "Todos os dias são meus" e é da escritora Ana Saragoça. aproveito para deixar aqui a minha recomendação. é um livro fantástico! well, hope you enjoy.
«Imagine-se uma praceta à hora de jantar. As janelas iluminadas. Tudo o que a visão consegue captar são vislumbres de pedaços de vida; tudo transborda vida. Gritos insonoros presos por um vidro grosso, sorrisos amáveis, mãos a saltitar mesa fora. Olhares promissores, outros apagados. A derradeira diversidade humana à escolha do nosso olhar: mães atarefadas, barrigas cheias. Crianças, bebés, adultos, idosos. Pele morena, branca, negra. Olhos claros, escuros. Lábios rosados, outros pálidos. E todos cirandam de um lado para o outro.
Os olhos observadores de um coração vazio olham tudo ao pormenor. Como se, por momentos, aquela imagem de família, feliz ou não, enchesse um olhar sozinho. Presencia-se um fogo triste interior marcado pela diferença entre o seu ser e o mundo. E quanto mais observa, mais aprende e quanto mais aprende, mais deseja deixar de o fazer. Um ciclo quase que vicioso movido pela falta de um beijo de boa noite, de um simples “queres que te passe o sal?” ou, mais prosaicamente, de um olhar: um olhar que grite o verbo pertencer e que aconchegue a noite inteira, por muito frio que faça. A ignorância por vezes soluciona muitos males principalmente quando se aborda temas como a solidão.
Confesso que não consigo ser indiferente à palavra “sozinha”. Não consigo. Palpita-me logo qualquer coisa dentro do peito que me recorda o medo que tenho desse futuro tão isolado. Como se pudesse prever coisas horríveis e como se a certeza morasse na minha pele. Por momentos sinto vontade de olhar para a janela e me encher de vidas alheias para preencher a minha.
E era isto que ela fazia. Ela que se foi embora para sítios mais claros, e espero que mais contentes, e que continua a deixar os porquês no ar.
(...)
Acendia as luzes de casa e saía para a rua à noite, por vezes. Ficava cá fora a observar a luz que se moldava à renda das cortinas. Imagino que observasse ilusões e sorrisos e festas na cabeça para a comodidade. E olhava, observava, reparava e encantava-se. “Todo o aconchego é legítimo” e toda a solidão tem a sua maravilha. Nem que seja meia dúzia de frases sinceras.»
Os olhos observadores de um coração vazio olham tudo ao pormenor. Como se, por momentos, aquela imagem de família, feliz ou não, enchesse um olhar sozinho. Presencia-se um fogo triste interior marcado pela diferença entre o seu ser e o mundo. E quanto mais observa, mais aprende e quanto mais aprende, mais deseja deixar de o fazer. Um ciclo quase que vicioso movido pela falta de um beijo de boa noite, de um simples “queres que te passe o sal?” ou, mais prosaicamente, de um olhar: um olhar que grite o verbo pertencer e que aconchegue a noite inteira, por muito frio que faça. A ignorância por vezes soluciona muitos males principalmente quando se aborda temas como a solidão.
Confesso que não consigo ser indiferente à palavra “sozinha”. Não consigo. Palpita-me logo qualquer coisa dentro do peito que me recorda o medo que tenho desse futuro tão isolado. Como se pudesse prever coisas horríveis e como se a certeza morasse na minha pele. Por momentos sinto vontade de olhar para a janela e me encher de vidas alheias para preencher a minha.
E era isto que ela fazia. Ela que se foi embora para sítios mais claros, e espero que mais contentes, e que continua a deixar os porquês no ar.
(...)
Acendia as luzes de casa e saía para a rua à noite, por vezes. Ficava cá fora a observar a luz que se moldava à renda das cortinas. Imagino que observasse ilusões e sorrisos e festas na cabeça para a comodidade. E olhava, observava, reparava e encantava-se. “Todo o aconchego é legítimo” e toda a solidão tem a sua maravilha. Nem que seja meia dúzia de frases sinceras.»
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