relógio sem horas certas

No outro dia olhei para o Mundo e senti-me parva:
Descobri que afinal estava a olhar para os pés
Os dedos mexiam-se, devagarinho, muito devagarinho
Fiquei a observá-los, meia a rir meia a chorar
Continuavam a mexer
Para cima, para baixo
Para a frente e para trás
Para a frente e para a frente
Parei.
Ia caindo mas fui a tempo de parar
Estacada no pavimento suspirei mas não de alívio
Suspirei porque não me lembrei de outra coisa para fazer
Não sei fazer mais nada a não ser olhar para pés em vez de Mundos e suspirar
Um dia vou aprender
Vou aprender mandarim ou como se trata de plantas carnívoras
Aproveito e tiro um curso sobre as componentes das canetas de feltro
Pode ser que assim me encha o suficiente e não volte a olhar para pés
Não gosto de pés, nunca gostei
Mas não sei fazer mais nada
Sou uma máquina
Um relógio
Tic
Um dia aprendo a cuidar de alfaces
Tac
Para o ano peço que me ensinem a pintar a oléo
Tic
Daqui a uma hora vou aprender a coser um botão
Tac
Agora vou aprender a cuidar de ti
Tic
E depois aprendo a cuidar de mim
Tac
Já não sou um relógio.
Já não sei ser um relógio.
Desaprendi
Esqueci-me
Tiraram-me o programa
Fui formatada
Não sei
Só sei olhar para os pés e são feios
Tenho as unhas pintadas de azul para imitar o céu
Mas não olho para o céu, olho para os pés e as unhas dos pés
Sou uma poeira
Voei
Agora estou no Japão
Quero vestir um kimono mas não posso
Sou poeira e voo
Porque não é preciso saber ser-se poeira
Basta ir
E vou
E voo
E sou
Não preciso de saber
Só preciso de ir.

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